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- Ô mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina? Costura o fio da vida só pra poder cortar - Ô mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina? Prepara e bota na mesa com todo o paladar - Ô mãe, me explica, me ensina, me diz o que é feminina? E esse mistério estará sempre lá Joyce |
Em pé na plataforma lotada numa estação de metro aqui em São Paulo penso nas tantas almas desajustadas que já esbarrei nessa multidão. Gente perversa, cruel, condenada...
Terça-feira da semana passada, contrariando a minha decisão de não sair de casa , saio para encontrar uma amiga querida para falar de projetos, vida , jogar conversa fora. Na companhia de taças de vinho. Muitas. Eram sete e meia da noite. Alcanço a rua. Tomo um ônibus que me deixa na estação Barra Funda do metro. Decido pela escada mais distante e corro para entrar no vagão que me espera de portas abertas. Sento ao lado de um garotão, no chamado "banco dos bobos".
Fazia muito frio, eu vestia um sobretudo recém comprado num brechó. Adrenalina baixando, reparo que o garoto ao meu lado veste bermuda, camiseta e chinelo de dedo. Eu inverno, ele verão.Olho pra ele e digo : -" Você vai morrer de frio antes de chegar ao seu destino." Meu filho, estivesse aqui, diria que eu tenho mania de puxar conversa com todo mundo, que é um absurdo isso . O garotão então, olha pra mim e responde : -"Depois de onze anos, senhora, na rua pela primeira vez." Engulo seco. Penso na crítica do meu filho. Organizo meu pensamento.Ex-presidiário. Cadeião de Pinheiros. Trem da CPTM. Metrô. Banco dos bobos. Meu comentário. Falar o que?
-"Onze anos ? Muito tempo...você tem família? mãe ?"pergunto.
-"Sim, senhora, tenho" , ele responde.
-"Sua mãe deve estar na maior felicidade.Onze anos.. "
-"Ela não sabe, senhora.Foi me visitar no domingo e eu não sabia que seria levado ao Fórum na segunda-feira.O júri me soltou, senhora."
-"Uau !!! Ela não sabe ? Ninguém sabe ? Você mata a sua mãe do coração hoje, rapá !"
Ele sorri, timidamente. Próxima estação Santa Cecília, anuncia a voz. Silêncio. Eu,louca pra saber onde, como , quando e por que mas fico quieta. Sou jornalista por formação. Ele tira do bolso o seu alvará de soltura .Abre. Não consigo ler e fico sem jeito de vestir meus óculos. Nunca tinha visto um...Com olhar materno, volto a falar com ele, dizendo que nada vale a pena os 11 anos de vida que ele "perdeu". Ele consente. Digo pra ele se afastar das más companhias e ficar limpo.
-"Tome tenência. Onze anos sua mãe lhe visitando na cadeia.."
-"Duro. Não valeu a pena. Meu comparsa não agüentou e se matou na prisão."
Confesso que senti vontade de abraçar, de proteger, sem mesmo saber o que ele tinha feito. Ele me pergunta aonde deve descer para chegar na estação Armênia, de onde sairia o ônibus para Guarulhos, seu destino. Eu respondo que desceríamos na mesma estação e lhe mostraria aonde. Estamos na estação Anhangabaú e ele me diz :
-"A senhora deve lembrar de mim..". Sinto um frio na espinha. E meu pensamento me diz que comigo é sempre assim...nunca a coisa é simples...um ex-presidiário celebridade.
-"Lembrar ? Conta."
-"Fui eu que assaltei a casa do Sílvio Santos."
-"Quantos anos você tinha quando fez isso? Parece tão menino…"
-" 14 anos, senhora", ele responde.
-" Um bostinha de 14 anos achou que seria moleza entrar na casa do Silvio Santos e fazer um assalto. Cabecinha de merda a sua."
Ele sorri, de fato, pela primeira vez.
"Valeu a pena ? 11 anos da sua vida, menino."
"É, senhora, 11 anos.......Mas, se- tivesse- dado- certo??!!!!! "
E caímos os dois numa gargalhada.
Estação Sé. Desembarque pelo lado esquerdo do trem. Descemos os dois e ensinei por onde ele deveria ir para pegar o outro trem. Peço que ele tenha juízo, desejo boa sorte mesmo sabendo das dificuldades que o esperam. Nos despedimos. Sigo em frente.Quando viro para descer a escada ainda o vejo, com seus olhos em mim. Sorrindo ele bate com o punho no coração e diz um "Obrigado" que entendi por fazer leitura labial. E permanece ali, me olhando até o paredão não permitir mais.
Em pé na plataforma lotada numa estação de metro aqui em São Paulo, penso nas tantas almas desajustadas que já esbarrei nessa multidão. Gente perversa, cruel, condenada...
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Adyel Silva é cantora, compositora, atriz e jornalista |