Para o Affonso, que de tão diferente, se parece comigo
Quando me abandono, quase sempre, é inesperado e imprevisto. Pode ser ao divisar na multidão aquele olhar que sorri rápido e com medo de ser flagrado. Pode ser num toque furtivo ou ao falar: por favor, até mais, obrigado. Vem assim, sem esperar, esse novo devaneio. Aí, mais uma vez, me perco. E adentro, quase sonâmbulo, no território perigoso do prazer. E lá, sem muito esforço, volto no tempo, releio cartas, relembro. Percebo novamente meu assombro: será que vale a pena se jogar do precipício? Será? Ainda sei voar? E de repente os dias, antes riscos ríspidos no calendário de papel, ficam lindos. Nesse estado e nesse torpor,os passos saem do compasso e quase salto. Volto a ser um acrobata: me agarro em emoções ainda que sabendo que, neste cadafalso, o tempo não é infinito e nem me dará sustento. Mas basta o olhar, o rever e o acaso de reencontrar, que já me dou por satisfeito. Ultrapasso veloz os medos e a voz sai clara. Nem gaguejo ou titubeio. Só penso que se estiver no local certo, na hora certa e com o movimento exato, há muita chance dele estar. Se vamos nos conhecer ou se vou me esconder, quando os carros passarem, só o medo dirá. Confesso que nesse estado absorto, essas preocupações são ínfimas. Encantado que estou, sorte, azar, fome ou dinheiro estão muito aquém do que preciso. No momento, nada me atinge: sou um mito. Alimento-me dessa magia, que para olhos frios, pode sugerir agonia. Mas não. Esse ziguezaguear perambulado por ruas e avenidas é a verdadeira vida. Esse movimento ávido, em busca do imaginado, é o que me dá cura, agasalha e me faz companhia. Se será hoje, ou daqui há alguns pares de dias, que vou ter ou que tudo vai terminar, não dou a mínima. Solitário, guiado pelo desvão, sei que essa chance, esta possibilidade amaina a loucura de estar sempre sóbrio e são. Nessa vida, breves são os momentos que temos um pouco de certeza fora do nada. Uma emoção mais forte ali, um pânico acolá ou um descontrole raro. Na maior parte do tempo estamos lúcidos, dormindo ou chatos. Vou aproveitar mais um surto nefelibata. Mesmo que eu confunda os corpos ou que ele não tenha olhado de fato. Estou desaparecido e nem deixo pistas do meu paradeiro. Por isso posso lançar-me em todas as direções e quem sabe localizar novo endereço. Nem precisa ser um sentimento próprio. Um alugado já alivia tamanho peso. Devo? não sei mas é assim que acontece. Talvez sejam as canções da noite passada. Talvez a madrugada. Só sei que quando amanheço às vezes não recomeço. Estou no fim de mim. As horas tardam. O elevador demora e me atrasa. Ao chegar no térreo meus receios ainda estão no meu andar. Parece que abro a porta e caminho nu pela rua. Percebo pelo pasmo dos contrários. Eles me olham assustados. Continuo sozinho. Um misto de silêncio, de algazarra infantil e de lágrimas me invadem. Por fim, me disperso. E na luz difusa da manhã tenho certeza que o alcanço e ficarei lado a lado.
Agosto de 2007
foto: Hugo Dias – Solidão
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